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À Pele

Não há nada em mim que diga o contrário. Nenhuma parte, nem uma unha ou fio de cabelo: estou morta. E, ao mesmo tempo, sinto na pele uma leveza, entende? Sinto. Não deveria a morte reter para si tudo ligado à vida? Esse era, pelo menos para mim, o único conforto, a única e razoável forma de aceitar a morte. O fim dos fins. O fim de mim mesma, de tudo e do nada. Enfim, o fim e ponto.
Mas não. Mesmo depois da bala, do calor, do arrepio, do suor e da partida, a pele. Por que a pele? E o estranho é que sigo (eu sigo!) tentando compreender porque a pele. Por que o maior órgão do meu corpo? Não poderia ser o cerebelo, os olhos, as juntas? Não. Fico sentindo a pele.

À Pele

É como se ela quisesse me dizer algo. Uma última mensagem talvez? Inscrita em mim, profunda. Talvez, se eu compreendê-la, tudo acabe, enfim.
A pele reveste todo o corpo formando uma barreira protetora de tecidos. Suas três camadas (epiderme, derme e hipoderme) são constituídas por milhões de células e terminações nervosas e, dizem, são equivalentes a 15% do peso total de um indivíduo. Eu não consigo dizer agora, mesmo do outro lado, qual parte da pele eu sinto. Para mim, a pele sempre foi a parte dos pelos, poros, do sentir. Agora vejo o quanto é importante. E eu nunca valorizei o meu dermatologista.
Os seios, por exemplo. Não seriam o que são se não fosse a pele. Agora, os meus estão diferentes. Um se mantém igual: duro, redondo, com uma leve inclinação para fora. É, ele gosta de opostos. Não para frente, levemente para o lado esquerdo, querendo se separar do outro. E quem diria que um tiro iria separar-me? E não da pele…que coisa!
O outro seio se apresenta incompleto. Deveriam juntar-nos aos nossos restos, mesmo quando se espalham por aí. Mas ninguém pode reclamar de seus restos mortais. Então, parte deles fica solta, dizendo pra vida que um dia existi.
Eu queria os meus restos. Os colocaria sem pressa pedacinho por pedacinho de volta em mim. Mas acredito que ainda assim um pedacinho faltaria. Foi para dentro, em alguma parte de mim, com a bala.Gostaria de saber qual calibre, qual forma, peso e textura. Mas, estou morta e não ouvi o relatório a respeito, se é que teve algum. (Se não teve nenhum relatório mamãe não vai me perdoar. Até no fim, no meu fim, fico sem palavras para falar da dor. Sabe, sempre me faltaram palavras para falar da dor).
Os seios. Sempre gostei deles. Mas só agora – e essa é a ironia da vida e da morte – percebo isso. Se estivesse viva colocaria minhas mãos sobre eles, pele sobre pele. Apertaria com doçura e roçaria os dedos por toda sua extensão. Gosto especialmente da pele que fica embaixo dos seios e se une à pele da barriga, do início da barriga. É a pele do início da barriga, não é? Será que existe algum nome técnico? A medicina,e os homens, têm nome para tudo. Mas de que adiantam palavras quando falamos do sentir?
Queria poder tocar novamente esta parte de mim.
Os dedos pousariam de leve. O anelar e o dedo médio da mão direita tocariam o início do seio esquerdo (como um médico mede a pressão dos pulsos? Não, mais leve, bem mais suave). Eles seriam levados instintivamente a roçarem por toda a extensão de baixo do seio, seguindo para o centro do peito. Iriam e voltariam ao início, como um leve balanço ritmado Em um momento, ou dois, seguiriam para o centro do peito aguardando a próxima inspiração-expiração para seguir seu destino. Mas hesitariam por um instante. Um seio já foi, deve-se aproveitar mais o segundo. Assim, toda a mão abriria (como uma rosa?), apoiando o seio em si. O bico, entre o dedão e a palma da mão, apontaria para o mundo, agora, em repouso.
E eu, que me encontro no repouso absoluto dou conta que o sentir não cessa. Será que não estou definitivamente morta? Não, estou morta. Tudo indica que “já passei dessa para uma melhor”.
Que frase estranha. Não me sinto melhor, apenas diferente. Intrigada com a pele e com sua beleza. Me reveste inteira, permite com que eu sinta o sol. Nunca mais sentirei o sol?
Talvez essa seja a perfeição, o paraíso: ser pele, ser o sentir.Ninguém jamais cogitou a possibilidade da pele ser a alma? Não! Diriam convictos: “a alma está dentro, não é matéria”. Mas existe mais essência, mais matéria em nós que a pele? Ela é tudo, é o todo de nós e em nós e ao mesmo tempo nada.
Quem toca, constrói é a mão, os dedos. Quem pisa, dança, são os pés. Nunca a pele. (“Olha que barriguinha linda!”, “Sente cócegas criança?”. Viu? Nunca é a pele….).
Senhora do corpo sem ter trono, nem leito. Não tem começo, nem meio, nem fim. Como o corpo e a alma.
É…a pele é a morte dizendo oi a cada experiência, a cada sensação oferecida.Marcada e imaculada na memória. É o que resta, o que me resta.
Posso sentir os pingos de chuva daquela tarde em que achei que tinha perdido tudo e o calor de outros braços me fizeram cessar o chorar com o céu. É, a alma é a pele.

Dezembro de 2008

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Morre em mim a certeza de que sou Deus

Morre em mim a certeza de que sou Deus

Morre

E todas as células lamentam sua mortalidade

 

Morre em mim a crença de que sou Deus

Morre

E meu pranto molha a cegueira que decide o final

 

Morre

E desespero em minha finitude

Fragilidade

Passos em falso

Falsidade

 

Quando algo morre em mim

Morre também parte de mim

E lembro

 

E se de algo além do finito

Viemos

Mistério

 

Recebamos a graça de estarmos vivos

E de morrermos

 

Sigo com os pés titubeantes, pois frágeis

E mãos carinhosas, pois únicas

E mente sã, pois limitada

 

Sem certezas além do fim

Com morada em mim desde o conceber

E na pergunta que dessa própria graça

Não se sabe a graça que tem

 

Morre em mim a certeza que tudo posso

Que sei de tudo

Que compreendo

Que sou Deus

Morre

 

E dessa dor,

De encontrar-se mortal

Finita

Limitada

Embebida em Mistério

Sem nome, vazio e silencioso

 

Procuro a ponte

A luz

A fonte

Que talvez tenha respostas

Já que não as tenho mais.

 

E me entrego

À minha humanidade

E o erro fica mais próximo de mim

E também a dor e o prazer

E toda a dualidade

E todo apego e aversão

E a vida e a morte

 

Morre em mim a ideia de que sou Deus

E ganho

Deus

E sonho que posso voar

E acordo

E o sangue, e as entranhas e o parto acontecem

 

E faz do choro

Da fé

algo possível

 

E tenho unhas, medos, insensatez

E amo

E dou risadas

E asso pão

 

Mortal

Com fim

Com existência

E fico mais próxima de mim

 

Vejo

Sinto

Falo

Escuto

 

Parte

 

Não o todo

Não completo

Não infinito

Com fim

Em mim mesma

 

E com a possibilidade de encontros

Com o outro

Comigo

Com a vida

 

Quem diria, eu, mortal.

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