Cecile não queria pintar
Todos diziam com seus olhares atordoantes que ela era a pintora da família
Que iria fazer sucesso
Por certo
O que eles não entendiam
Não podiam ver
É que quando o pincel tocava a tela
E a tinta desenhava criando arte
Não era ela
Era
Quando mamãe lhe pedia um pedaço de bolo e ela enfiava com força a faca naquela massa creme
Ou quando Larissa corria pelos corredores lhe chamando para brincar
Nada disso eram elas
Era
Foi numa noite
Qualquer
Daquelas que se espera, como tantas outras, que alguém ou algo mude nossas vidas
Que aconteceu
Olhava o céu, as estrelas
E voltou-se para dentro
Nada
Nada
Como o céu
Ao fechar a janela já não era igual
Já não era ela
Era
No começo achou que não conseguiria viver assim
Que lhe faltaria força
Enganou-se
Saber do nada era a maior força que experimentara
Ia e vinha sem medo
Ah…medo…
Era nada
Um dia no terraço com Larissa pegou uma maçã
Larissa sorriu e pediu: Dá, dá!
Deu
Larissa cravou os dentes e chupou o sumo
Maçã doce
Disse
Você que é doce pequena.
Larissa, então, sabia.
Ficou olhando a irmã, minutos, horas, dias.
Ela crescia e perdia a compreensão.
O nada.
Anos mais tarde, a encontrou no balé da cidade.
Depois, foram a um café.
Larissa falava-lhe de como tinha sorte, como tudo o que sempre quisera estava acontecendo em sua vida. Estava feliz.
Cecile perguntou se lembrava da maçã, daquele dia, da infância.
Larissa sorriu, queria um sorvete de chocolate. Lembra? Como mamãe preparava para nós?
Mas Cecile não queria lembrar o que já era
Queria entender como a irmã chegara àquele ponto
Como todos chegam ao ponto de esquecer-se
Em outro dia estaria triste, outro feliz…de que adiantavam todas as histórias que lhe contava?
De que adiantavam se não sabia que eram apenas histórias. Que ela
Era
Combinaram de se encontrar no dia seguinte
Larissa queria informações sobre a vernissage de Monique
Não era ela que ninguém elogiava? E vejam só: quanta competência!
Você deveria ter pintado mais, Cecile. Se naquela idade já fazia tudo o que mamãe me contou…Com certeza seria você a expor agora.
Despediram-se
Cecile olhou o salto alto da irmã virar a esquina
Se percebeu suspirando
Um alívio leve de quem não precisa mais fingir
Pelo menos não até amanhã
29 de maio de 2009
Adorei esse. simples.